Neste segundo bloco, queremos que o grupo (agora reduzido a 16 intervenientes) continue a ocupar-se com a questão do processo colaborativo, mas agora a partir de uma pergunta comum (uma abordagem que fica entre a “ausência de pergunta prévia” explorada no primeiro bloco e a existência de uma “pergunta individual” a ser explorada no terceiro bloco).
Esta é uma problemática que ocupa João Fiadeiro desde os anos 90 e que, de certa maneira, foi a razão pela qual se começou a desenvolver uma ferramenta de trabalho como a Composição em Tempo Real. A ambição na altura era desenhar uma linguagem comum que criasse um campo de experimentação partilhado, mas sem deixar que essa linguagem nos condicionasse (nos condenasse) a seguir uma direcção previamente estabelecida (normalmente ditada pelo autor). Mas também não tínhamos interesse em desenvolver uma experiência exclusivamente horizontal porque sabíamos que a simples extracção do autor da equação não impedia que as estruturas de poder, desta vez implícitas, tomassem conta da narrativa.
O que constatamos é que existe uma diferença abissal no modo como esta estratégia “diagonal” de abordar a colaboração é aplicada se estivermos perante a perspectiva de uma decisão individual (como acontece na prática da improvisação ou mesmo no trabalho a solo), ou a partir da perspectiva de uma decisão colectiva (como acontece, por exemplo, no processo criativo em projectos de grupo). Enquanto que, ao nível da decisão individual, a “questão do afecto” pode ficar na sombra, protegido da luz e da formulação (e dar-se ao luxo de se manifestar só no fim), ao nível da criação colectiva, se o afecto (aquilo que nos move e nos liga) não for partilhado à partida, emergem de imediato, no interior do grupo, dinâmicas de relação simétricas (tendencialmente conflituosas) ou complementares (tendencialmente submissas) que impedem a construção de um comum partilhado. O que procuramos é criar as condições para que se activem formas de relação “recíprocas” e, no caminho, desactivamos lógicas binárias de relação onde, ou se tenta convencer alguém da nossa opinião ou ideia, ou nos subjugamos à opinião ou ideia do outro. Uma relação recíproca implica que partilhemos os “afectos” e as forças em jogo no momento do encontro (por definição vulneráveis, incompletas, frágeis). Implica que escutemos e prestemos atenção aos sinais (ainda fracos) daquilo que o acontecimento pede. Implica aceitar que não sabemos (juntos).
Como é que se identifica, circunscreve e partilha um afecto colectivo de forma a se poder trabalhar o encontro? E como é que é possível criar uma força vital comum que permita que a obra final traduza uma inquietação transversal e não um patchwork de tendências, desejos e desassossegos dispersos?
Serão estas as questões que servirão como ponto de partida para a investigação neste segundo bloco, que serão colocadas e geridas sobretudo a partir das vozes (e dos corpos) de quem experimentou na pele a tensão entre autoria, autoridade, autorização e autonomia: os performers e co-criadores dos projectos de grupo. Este período de investigação será por isso exclusivamente mediado por Márcia Lança e Carolina Campos, com a presença pontual de João Fiadeiro. Não só tiveram ambas papéis centrais na criação de peças de grupo da RE.AL como, nos últimos anos, vêm desenvolvendo juntas um conjunto de projectos em co-autoria onde estas questões têm um lugar de relevo.
O resultado das investigações desenvolvidas neste bloco serão mais uma vez apresentadas no Teatro do Bairro Alto num formato e numa configuração a definir.
Em paralelo a esta investigação continuada, instigada e mediada pela Márcia e a Carolina (mas desenvolvida de forma auto-organizada pelos intervenientes no curso), teremos a participação de alguns colectivos convidados que irão funcionar como “estudos de caso” através da partilha das suas práticas, experiências e questionamentos em relação à criação colectiva. Num primeiro momento iremos acolher João dos Santos Martins com a Companhia, projecto criado em modo colectivo em 2018 (que reúne o mesmo grupo que criou “Projeto continuado” em 2015) e que coloca o termo “companhia” em perspectiva, referindo-se simultaneamente à ideia de uma companhia de dança, à companhia entre pessoas e a uma noção de colectivo e interdependência presente na experiência de comunidade. De seguida teremos o projecto Hormigonera – que em português significa “betoneira” – uma prática de criação colaborativa que pesquisa modos alternativos de colaboração e processos dramatúrgicos. É activado por um grupo de artistas uruguaios que trabalham nas linguagens do espaço, matéria, luz e som para invocar acções performativas que procuram “dar voz” a materiais “pobres” e “marginais” colocando-se eles próprios, enquanto artistas, ao serviço do seu agenciamento. Por fim teremos o colectivo catalão Orquestina de Pigmeos, que se movimenta na fronteira da performance, do som e do cinema, trabalhando sobretudo em ambientes site-specific e em estreita cooperação com as comunidades e moradores locais. Neste bloco teremos ainda a participação, de modo transversal, de David-Alexandre Guéniot, director da editora GHOST, que desenvolverá um projecto de edição com os intervenientes, que culminará na criação de um livro de artista(s) produzido de forma colectiva.